domingo, 5 de agosto de 2007

Exercícios
para a construção
da cidade



Ruas de miséria e vício
A palavra faz história
Ante a bruma os trilhos
Escondem os caminhos
a cidade sonolenta surge
lenta feita um sonho
adormecida à sarjeta
escorre em gemidos ocos
o uivo de sua revolta
em fuligem, fugas fumaça
desenha silhuetas
a língua feérica surge
seus nomes, seus cheiros
o lado oculto das gentes
o livro gasto
e suas árvores voam
por sobre o asfalto
o rosto de todos
o ritmo de suas casas
a geografia dos movimentos
a dor de cada beco
perde-se às estranhas
o pranto de cada encanto
a deslizar o corpo
de seu corpo à cidade
miséria e sonho
a sanha e vício
raro delírio a exibir
farrapos coloridos à aurora
de luz e luzes em sangue
desatam o riso único
entre os prédios da nova senzala
a marca dos faróis cria
a sombra dos desejos
a cidade de cada um
célere em autos liquefeitos
corre estática
em suas avenidas
o eco do mais recôndito
encerra lúdico, o verbo
entre virgulas o senso
comum espanta clones
agüenta a fome
a sede
cede as ruas de sua memória
cada cidade
pedaço de cidade
a folhear o vento
feito a mão que acaricia
seu corpo a dor
a lei
gargalhadas vibram
a sua estrutura
a vício
a sangue
entardece o cotidiano
nos passos de suas ruas
sempre outro
sempre o próximo
a incendiar a lua
feito espelho de seu rosto.



Na praça principal
Jovens laranjas
Oferecem dinheiro
Abordam transeuntes
Amarelam a face
De sorrisos ingênuos
Na praça principal
A linguagem derretida
Em passos passados
Esconde rastros
Em antigos desejos
O delírio em chamas
Na praça principal
São novos os velhos
Amigos em trânsito
Amealham trocados
Acendem mágoas
Nas raras conversas
Na praça principal
A cidade escorre
Na lira ausente
A imagem das ruas
Encarcerada nas botas
Que arrancam jardins
Na praça principal
A miséria é exposta
A alegria contida
Em troca do medo
Tangendo o povo
Um canto de escárnio
Na praça principal
Lagartos murmuram
Bestificados ao sol
Poetas e cafés
A agonia dos sonhos
E a faixa de segurança
Na praça principal
A memória de todos
Some ao vento
De todo o sempre
Só teu olhar
Desenha o silêncio
Na praça principal
Imenso o beijo
impresso nos bancos
Em cada árvore
Dançando no ar
A folha de Eva
Na praça principal
São todos culpados
Inocentes de vida
Livre caminhar
Marcando a rotina
Em dor e alegria
Na praça principal
São todos culpados
Inocentes de vida
Livre caminhar
Marcando a rotina
Em dor e alegria
Na praça principal
A língua do povo
Não aceita grades
Voar oceanos
À solidão de todo
O coração espanto
Na praça principal
O suor, a sanha
O asfalto em sangue
Fumaças trocadas
Qual fato há foto
O peito em pânico
Na praça principal
Sarará deleite
Negro branco tom
Pinte, role, deite
Feito fosse transa
Todo mundo dança
Na praça principal
Passa carro
Passa gente
Passa a cidade
De cada um
A geografia
De todas as geografias
A alma das ruas
Labirinto original
A praça de cada cidade
De cada praça
Assim e
Tal...



Canta
A rua em trânsito
Deságua
Autos enlouquecidos
A madrugada
Embala ruídos
Corpos frenéticos
Um frêmito
A rua é transe
Exaure
Luzes, raios
Asfalto, brilho
Encanta
Urbano mito
À rua insone.



1940
o silêncio dos sinos
absorve a cidade
minas de interiores
pacata luz
a expor o tempo
a cidade mergulhada
em cada um dos seus
habitantes a vagar
o corpo da cidade
é nela que nascem
e crescem aventuras
a imagem de todos
na mesma cidade
de cada um
a sua cidade
desenhada em sangue
encantos e madrugadas
um grito
um urro
um susto
sirenes e sonhos
adormecidos os sinos
divagam em nuvens
os dias mortos
a alma das gentes.



VINTE VERSOS E O SILÊNCIO


Um homem caminha e sonha
Só a comer cidades
Inventa caminhos
A aventura da memória
Percorre labirintos
Um homem anda
Flana avenidas de vício
Reza em sangue o asfalto
A pureza desenha delírios
Rios de agonia
Um homem segue passos
A solitude do absurdo
Cada vento um novo céu
Anuncia o pranto herege
Em profano encanto
Um homem,
Qualquer um que vá
É sempre o pó
A varrer veredas
O coração em pânico.



OS OLHOS DA CIDADE



Eu gosto de te ver
de todos os jeitos
eu gosto de te ver
de todos os lados
eu gosto de te ver
sem você me ver
eu gosto de te ver
na imagem que crio
feito um brilho
você no reflexo
seu corpo no espelho
nos meus olhos admiro
eu gosto de te ver
feito um voyer
dono da sua imagem
eu como você
quando você me vê
eu só quero ser
o olho que têm
o olho que é você
eu gosto de te ver
com os dedos no cabelo
a remexer idéias
como quem não pensa
eu gosto de te ver
e nada mais precisa
eu quero te ver
mesmo sem estar
de olhos fechados
até te encontrar


2003