domingo, 5 de agosto de 2007

Exercícios para uma poética do olhar


A ausência do mundo
Faz-me uma multidão
Só me resta a imagem oculta
Sob os telhados de inverno
Um seixo voa ao sol
Gritos sem peso não incomodam
As sirenes de um ataque aéreo
Sobrevoam o circo e anoitece
O direito de se Ter medo
Como a cidade em ruínas
Bombardeia os sentidos
Outros os olhos do som
Entoam a melodia das miragens
Em tua vulva faminta
O desenho de todas as cidades
Desliza ao trapézio ao sussurro
Das gentes é toda visão.



Escrever o exercício do ócio
A esvair-se como sangue
Em nós a íris perfeita
Uma linha clara
Ou um risco escuro
E sempre outro traço
A marcar as mãos gastas
Ante o muro provável
O momento certo de mais um passo
Entorta os dedos
E cresce como hera a caneta
Aprisionando as palavras



O tempo sangra
Nos olhos o sol
É o sal da ausência
Flamejante recusa
E o tempo a engolir
Um leve rumor
A roçar o sonho
Tão longe o olhar
Agiganta a imagem
E tua língua nua
Asa do desejo
Venta vôos
O nome que some
Ante os olhos a incerta
Certeza dos olhos



O dia definha
No mormaço melancólico
O mar navega ilhas
Maiores que o olhar
Mergulham golfinhos
No imaginário de Netuno
A terra gira e volta e roda e
Vai ao futuro inatingível
O fim de todos
Os tempos
Q criamos
Profundos e livres
No céu impossível



As cores são
O olhar se abre
Ao corpo o exercício
Do susto ao prazer
Pleno de domingos
No horizonte pérfido
Ocasos comem-se
Pelos séculos os heróis
Amarelam faces
Outras palavras são
O mesmo som das folhas
Na terra de ninguém
Os olhos improváveis
Do sonho ao silêncio
Manhãs e madrugadas
Perdem-se no vácuo feroz
Cabeças rolam.



E de repente
Alguma coisa pode
Acontecer na minha cabeça
O meu corpo
Explode coração
Assim de repente
Omitir-se
Em algo que
Alguma coisa sabe
Sobe o corpo
Em veias o vinho
Em vida oferta-se
E de repente
Assim como houve
Ou não veio
Todo fim é
Nada importa mistérios
E o tempo em si
Insolúvel
Consome-se
Desaparece a vida



É terna a saudade
Da Lisboa ausente
Antiga saga
Lusa tabacaria
De seus versos
Espargidos em névoa
A fumaça dos séculos
O olhar eterno
De tantas raças
Reconstruídas
No olhar absurdo.



A FERNANDO PESSOA



Agora nunca é
Sempre eternamente
Um sopro só
Sabe supor
E nem todo círculo é
Aparente, o mesmo
Esvai-se no vazio
a noite brinca, voa
Clara a lua é
Um salto basta
Olhar: é vida
A cada fuga o início



Seu olhar
Absorto em dúvidas
Divide o rosto
Perfil de enganos
Como esperança
Sempre uma última canção
Seca-lhes os lábios
Corroído em lágrimas
Impenetrável
A face da musa
Castelos ardem chamas
Os dias cinzentos repetem-se
De tantas formas reclusas
Em tantos veios difusos são enormes as solidões
Do mar
Um arrastar de almas
a invadir a casa
Perpetuando silêncios
Em meu peito agônico


2002